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Os Estudos de Cultura e o trabalho do UX Reseacher

Qual a relação dos Estudos de Cultura e o dia a dia de trabalho do UX Researcher? Como ser mais assertivo na construção da Design Persona através dos Estudos de Cultura e o conceito de estilos de vida?

Apresentação de DJ

UX Research e Estudos de Cultura - onde começa essa relação?

Com a recente entrega da minha tese de mestrado, veio também uma reflexão sobre como o conhecimento adquirido durante esse árduo e desafiador processo pode influenciar e enriquecer minha prática diária como pesquisadora. Recordo-me da inquietação inicial que motivou a escolha do tema do meu projeto e que fundamentou todo o meu estudo: de que maneira os Estudos de Cultura poderiam ser integrados à pratica de UX Research? 

Desde o início do mestrado, já atuava em projetos de experiência do usuário e design de serviço, e durante as fases de descoberta e compreensão do usuário, percebia constantemente meu lado acadêmico se manifestando e contribuindo para o processo. Era evidente que os conceitos acadêmicos emergiram, seja por meio dos métodos de pesquisa aplicados, seja na busca por respostas ou na criação de estratégias para tornar os resultados da pesquisa mais envolventes e relevantes para as partes interessadas. Apesar disso, a inquietação sobre como aplicar de forma concreta os aprendizados acadêmicos na prática de UX Research ainda persistia.

O papel do UX Researcher

Com base na definição do papel do UX Researcher, que é entender as necessidades, comportamentos, motivações e problemas dos usuários, comecei a questionar o processo empregado para capturar a essência e a realidade desses usuários. Por meio de uma variedade de métodos de pesquisa, o UX Researcher é capaz de coletar dados, gerar insights acionáveis e propor melhorias e soluções para produtos e serviços. Para mim, esse profissional precisa combinar seus conhecimentos em métodos de pesquisa com uma visão estratégica e sistêmica, além de ter noções sobre regras de negócio e tecnologia. Acredito que foi essa necessidade de uma visão holística e contemporânea na pesquisa que me atraiu e impulsionou minha transição de carreira, levando-me até onde estou hoje. Embora essa trajetória mereça ser contada em outro momento, é evidente para mim a conexão direta entre o escopo do trabalho do UX Researcher e o conhecimento que aprofundei durante o mestrado em Cultura e Comunicação.

Um pouco do contexto teórico

Para compreender a relação entre minha atuação acadêmica e meu trabalho como UX Researcher, é importante primeiro entender minha área de especialização acadêmica: os Estudos de Cultura. Baseando-me nas perspectivas de Stuart Hall e Raymond Williams, adoto o conceito de cultura como "práticas significantes”, que, de forma bem resumida, são os padrões de comportamento que os indivíduos de uma sociedade seguem para compor um "modo de vida" específico. Stuart Hall argumenta que o significado das coisas não reside apenas nelas mesmas, mas em como são usadas, discutidas, pensadas e sentidas — em como são representadas. Ele afirma que o significado é fundamental para a formação da identidade, pois é o que nos dá um senso de quem somos e a que pertencemos (Hall, 1997, p. 03). Assim, o significado é continuamente produzido e reproduzido nas práticas cotidianas, tanto pessoais quanto sociais. Hall também destaca que "damos a objetos, pessoas e eventos significados através das estruturas de interpretação que aplicamos a eles. Em parte, atribuímos significado a essas coisas por meio de como as usamos e as integramos em nossas práticas diárias" (Hall, 1997, p. 03). Dessa forma, o significado é um processo dinâmico, intrinsecamente ligado às interações sociais e culturais que moldam a identidade e a percepção dos indivíduos.

No sistema de representação, cada escolha feita pelo sujeito para se comunicar carrega um significado a ser transmitido. Em essência, o entendimento de cultura só é possível por meio das "práticas significantes" (Hall, 2006, p. 09), que são produzidas e circulam em um contexto específico, impactando diretamente a formação das identidades. Assim, compreender o que é cultura requer entender sua construção dentro desse sistema de representação, que é composto por significados e sustentam o senso de identidade e pertencimento de um indivíduo ou grupo.

Ao considerar que cultura envolve a organização de um sistema de representação composto por significados que formam as identidades de uma sociedade ou grupo, é crucial entender os motivos pelos quais certos padrões são adotados e valorizados por esses indivíduos ou coletividades. Segundo Raymond Williams, o fator central para a análise cultural é o padrão pelo qual as relações sociais de um grupo ou sociedade são construídas. Esse padrão cultural consiste na seleção e organização de interesses e atividades, bem como na valoração específica que lhes é atribuída, resultando em uma distinta organização social, ou "modo de vida" (Williams, 1998, p. 52).

 

No contexto da modernidade líquida (Bauman, 2000), no entanto, esses padrões tornaram-se instáveis. Além disso, no circuito cultural, onde o sistema de representação é fundamental para a construção de identidades, os símbolos são numerosos e constantemente renovados em uma sociedade moderna de consumo.

Diante desse cenário volátil, como captar os padrões culturais em uma sociedade onde os símbolos, imersos em um contexto de consumo, são constantemente substituídos? A resposta pode ser encontrada no conceito de estilos de vida. No complexo fluxo de construção cultural, em que a relação entre o sistema de representação e as práticas significantes é crucial para a formação de identidades, os estilos de vida acrescentam um nível adicional de densidade. Esses estilos são reproduzidos por meio de filiações individuais diárias, dentro de um modo de vida social mais amplo. Os estilos de vida então seriam um tipo de código  de símbolos e significados que permite ao sujeito comunicar aos outros aquilo que ele carrega dentro de si, seus valores, hábitos, prioridades, necessidades e crenças.

UX Researcher deve compreender o que é Cultura

Diante disso, podemos concluir que tudo o que fazemos em nosso cotidiano produz cultura. Para compreender o contexto sociocultural de um indivíduo, é necessário entender suas práticas e comportamentos. Isso significa que, o profissional de UX Research deve também compreender a cultura, já que seu papel envolve captar as motivações, atitudes e necessidades dos usuários. Embora, ao tratar da experiência do usuário a análise se concentre na interação do usuário com um produto ou serviço específico, não podemos ignorar que estamos lidando com um indivíduo que carrega sua trajetória, contexto sociocultural e identidade construída. Suas decisões são carregadas de significados, os quais se formam dentro de um circuito cultural que deve ser analisado com cuidado e consideração por seus diversos vieses.

No contexto da sociedade de consumo, sob a ótica dos Estudos de Cultura, lidamos com um sujeito que navega entre diferentes identidades através de suas afiliações, construindo estilos de vida e participando do "supermercado das identidades". Tudo isso me levou a um questionamento: a partir do entendimento que os estilos de vida ajudam a compor a identidade do sujeito, e tendo a identidade como base para definir e direcionar atividades, motivações e comportamentos, como entender o usuário, no contexto volátil da sociedade de consumo contemporânea, e captar ao máximo a volatilidade de sua identidade através dos estilos de vida?

Compreensão do usuário e a construção da Persona

Durante o processo de compreensão do usuário e da construção de personas em um projeto em que estava envolvida, surgiram questionamentos sobre como eu estava levando em conta o contexto sociocultural do usuário e sua relação com o produto e seus casos de uso. Ao longo da criação da persona, especialmente após a fase de entrevistas em profundidade, comecei a refletir sobre a definição de motivadores, comportamentos observados e necessidades identificadas, e se todos esses dados realmente representavam a persona que estava sendo construída. O meu pensamento acadêmico em formação me alertava para o fato de que eu poderia não estar considerando adequadamente o contexto sociocultural e o significado por trás dos comportamentos e práticas identificadas. Mesmo analisando sob a perspectiva do produto em questão, o comportamento do usuário poderia, em certa medida, ser influenciado pelo seu contexto sociocultural.

Esses questionamentos e inquietações me levaram a aprofundar meu conhecimento no conceito de estilos de vida, à luz dos Estudos de Cultura, com o objetivo de desenvolver uma metodologia que incorporasse esse conceito de forma prática no meu trabalho diário de construção de personas. Embora o modelo possa não ser aplicável a todos os projetos e contextos, pois exige tempo para análise e desenvolvimento, ele pode oferecer uma base valiosa para o UX Researcher, auxiliando-o a captar aspectos essenciais sobre o usuário durante o processo de criação de personas.

Estilos de vida aplicado em um modelo prático

Neste artigo, não pretendo detalhar o método em si, mas sim destacar as características que definem estilos de vida e que podem ser observadas durante o processo de entendimento do usuário e refletidas na persona a ser construída. É importante ressaltar que nem todos os projetos requerem um entendimento aprofundado dos estilos de vida do usuário; em alguns casos, essa informação pode não ser necessária para compreender a relação do usuário com o produto ou serviço em questão. Como sugestão, faça um exercício inicial para avaliar o nível de conhecimento do usuário e utilize as características que apresentarei a seguir para determinar se o estilo de vida realmente interfere nos casos de uso relacionados ao produto ou projeto em que você está trabalhando.

Se fizer sentido para o seu projeto ou análise, comece identificando quais áreas da vida do usuário precisam ser exploradas mais a fundo, considerando como essas áreas podem influenciar a forma como o usuário utiliza o produto em questão. Com base nos meus estudos, identifiquei seis áreas da vida que podem ser analisadas para a construção de estilos de vida: trabalho, saúde e bem-estar mental, alimentação, estilo pessoal e aparência, lazer e educação.

Uma vez definida a área da vida a ser aprofundada, com base no conhecimento já adquirido sobre o usuário, procure entender o nível de influência e as fontes que moldam os aspectos predominantes nessa área. Para isso, considere três pilares: julgamento pelo outro, ou seja, o quanto o usuário valoriza a aprovação externa para sustentar essa área da vida; escolhas pessoais, o quanto as decisões do usuário são baseadas em seus gostos individuais; e o histórico sociocultural, que avalia a influência do contexto nas escolhas do usuário.

É importante reconhecer que o usuário está inserido em contextos socioculturais diversos, e que é impactado pelo que denomino "sensibilidades de afiliação". Isso significa que, embora o usuário possa escolher em quais áreas da vida deseja investir e se dedicar ao desenvolvimento de um estilo de vida, ele também é influenciado por fatores não lineares que podem impactar esse estilo de vida. Esses fatores incluem: acesso, nível de envolvimento, categorização dos bens de consumo e recompensa.

Vamos de exemplo prático

A partir desta análise simplificada sobre estilos de vida, podemos identificar atributos específicos para compor o perfil da persona. A seguir, apresento um exemplo prático desse modelo, focando na área da vida "Alimentação".

 

Em um cenário hipotético, consideremos um produto diretamente influenciado pelo tipo de alimentação adotado pelo usuário, onde seus hábitos e comportamentos nessa área impactam os casos de uso do produto/serviço. Neste caso, o serviço é um aplicativo que promove hábitos alimentares saudáveis. Dado esse contexto, é essencial compreender as atividades, comportamentos, práticas e motivações do usuário em relação à sua alimentação para que, como UX Researcher, possa trazer insights que direcionam para soluções estratégicas para o conceito de produto.

Suponhamos que já possuímos algumas informações coletadas por meio de entrevistas em profundidade e dados secundários. Como exercício, utilizaremos o modelo de mapeamento de estilos de vida para organizar as ideias, considerando a área de "Alimentação", os pilares de formação e as sensibilidades de afiliação.

 

Nosso objetivo é entender como os pilares de formação do estilo de vida influenciam os hábitos alimentares do usuário, bem como as variáveis de sensibilidade de afiliação que moldam suas práticas de alimentação.

Pilares de formação

Julgamento pelo outro

O usuário valoriza a opinião e validação externa para manter suas práticas de alimentação saudável, usando as redes sociais para compartilhar esses hábitos e obter feedback contínuo.

Escolhas

pessoais

Não comer carne vermelha é uma escolha pessoal que influencia seus hábitos alimentares e consumo.

Histórico sociocultural

A forma como o usuário aprendeu a se alimentar, como comer mais em casa e fazer a própria comida com sua família, influenciou sua alimentação atual.

Sensibilidade de afiliação

Acesso

O alto preço de alimentos sem açúcar ou orgânicos podem influenciar o usuário nas escolhas por estes tipos de produtos. 

Nível de envolvimento

Apesar dos hábitos alimentares serem saudáveis, o usuário não se restringe a comer doces e consumir bebidas alcoólicas aos fins de semana.

Categorização de bens de consumo

Para o usuário ter um hábito de alimentação saudável significa comer produtos não industrializados, sendo assim, não é influenciado por produtos saudáveis, porém minimamente industrializados. 

Recompensa

Para o usuário a recompensa de se alimentar bem é estar saudável e não significa ter um corpo estrutural.

Resumo do estilo de vida

O estilo de vida alimentar descrito é moderado e focado no equilíbrio. A pessoa prioriza produtos naturais e não industrializados, sem exigir que sejam orgânicos, e evita o consumo de carne vermelha por preferência pessoal, mas consome peixes, carne branca, laticínios e ovos. Mantém uma dieta baseada em receitas familiares, complementada por consultas online para novas ideias. Embora siga uma alimentação saudável, não se priva de experimentar novos alimentos em atividades sociais. O preço pode ser um limitador quando o assunto é consumo de alimentos saudáveis, por isso prefere cozinhar seus próprios alimentos. 

Resultados

A partir deste conhecimento é possível apresentar alguns insights acionáveis para o cenário do aplicativo proposto e sugerir algumas ideias relacionadas:

Insight: A base das receitas do usuário provém de conhecimento familiar, dessa forma o usuário depende de antigos cadernos de receitas de família, ou ainda do conhecimento compartilhado boca a boca.

 

Ideias / soluções: 

  • Recurso de compartilhamento de receitas entre amigos e familiares através do app;

  • Repositório de receitas disponíveis em grupo, que pode funcionar como um livro de receitas digital, mas com tradição familiar;

 

Insight: Usuário precisa da validação externa para sustentar seus hábitos alimentares saudáveis. O usuário gosta de ser reconhecido por seus hábitos alimentares saudáveis e lhe satisfaz ser referência quando o assunto é receita caseira saudável.

Ideias / Soluções

  • Recurso de compartilhamento direto nas redes sociais a partir do app;

  • Dinâmica de score e acúmulo de pontos a partir do compartilhamento para troca de premiações e descontos dentro do app

Poderíamos explorar muito mais informações se aprofundássemos o conhecimento no tema sugerido. O modelo de mapeamento de estilo de vida traz algumas outras camadas de informação não demonstradas neste artigo. No entanto, o objetivo aqui foi exercitar e demonstrar a importância de uma estrutura bem definida na construção do conhecimento sobre o usuário e na fundamentação teórica desse conhecimento. Isso permite que as informações adquiridas sejam transmitidas de maneira clara e assertiva.

Referências

Bauman, Zygmunt (2013) A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar. Breakthrough Brands. New York: Oxford University Press.

​Chaney, David (1996). Lifestyles. New York: Routledge.
Chaney, David (2001). Culture in the communication age. London: Routledge. Cap 4, p. 75-88
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Gomes, N.P. Gestão da cultura: estratégia e articulações no âmbito do branding e das tribos urbanas. E-revista Logo, v. 8, n. 2, pp. 24-47, 2019.

Hall, Stuart (1997). REPRESENTAT'ION Cultural Representations and Signifying Practices. 1ed. Londres: SAGE Publications Ltd. 

Hall, Stuart (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11ed. Rio de Janeiro: DP & A Editora. 

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